Hoje estamos em Beringel . Estacionados numa fresca sombra de um jardim, vemos surgir três pequenas figuras, com os cabelos desalinhados pelo vento, carregando às costas mochilas.
Alexandra, Maria do Carmo e Sebastião, surgem curiosos e cheios de perguntas.
- Isto é uma biblioteca?
- Podemos entrar?
- Podemos mexer nos livros?
Acolhemo-los no interior da Biblioteca Andarilha e satisfazemos a sua sede de tocar e descobrir .
São meninos de etnia cigana e tocam com a ponta dos dedos os livros de animais com texturas. Lêem com as mãos, com os olhos, com o corpo que se agita sôfrego de saber.
Ao golfinho chamam foca. Ao lagarto chamam dragão.
Se continuarem a aparecer, aprenderam outras palavras e com elas designarão outros mundos.
Perguntamos-lhe se querem ouvir uma história e logo nos dizem que sim.
Observam e escutam as palavras da Lénia com os olhos arregalados e cintilantes, um sorriso desenhado no rosto. Tem sede de atenção e de conhecimento.
Três histórias ouviram mas ouviriam mil, os seus corpos estão quietos e nos olhos o espanto mostra que viagem pelos livros, pelas palavras, pelas imagens pode ser serena .
Depois das histórias a Lénia pergunta-lhes o que querem ser quando forem crescidos.
- Eu quero tirar a carta, diz Alexandra.
- Mas ter carta não é profissão Alexandra. Diz-me lá é o que queres ser quando fores grande. Fica em silêncio a pensar nessa coisa profissão que talvez não saiba o que significa. Maria do Carmo, a mais velha dos três, responde:
- Gostava de ser polícia ou advogada, para poder prender ou tirar da prisão.
Marcados pela pobreza, pela desconfiança, pela exclusão vivem em sonhos o poder ter autoridade.
Ali, na biblioteca largo, todos os sonhos são possíveis.
Ali, pela palavra pode ganhar-se voz social.
Nelson Migueis - Estagiário de Animação Sócio Cultural
sexta-feira, 26 de março de 2010
Porque será ?
O dia estava carregado e anunciava trovoada. De quando em quando uma gota de chuva grossa molhava-nos o rosto.
A Biblioteca Andarilha chegava a Trindade e pouco e pouco as crianças e os adultos aproximavam-se curiosos. A memória os mais velhos guardam ainda a lembrança da carrinha da Gulbenkian e a longínqua experiência com a palavra escrita.
Crianças, moças, mulheres e também homens desceram ao largo, para escutar, ler e bailar. A Helena apressa-se a convidar para entrar, para usar e aos poucos os livros, os jornais e as revistas saltam da carrinha e espalham-se pelas mantas pelos bancos . (foto)
Ainda não sabemos o que gostam de ler . Percebemos que os jornais estão todos a rodar e que em torno de uma mesa de revistas as senhoras comparam rendas e modelos. (foto)
Percebemos também que querem conhecer-nos e que anseiam pelos contos que o Jorge Serafim contará nas escadarias da aldeia na noite dos Contos do Suão iniciativa que será feita simultaneamente em todas as aldeias do concelho de Beja.
Daquei a uns dias mais de 50 narradores virão a Beja oferecer a todas as aldeias uma sessão de contos. São danados estes narradores qualquer toque a rebate e já se organizam para ajudar.
Já chove e temos de nos abrigar num cantinho. Mantas no chão e ali sem adereços, apenas com livros, gestos e voz, tentamos acordar nas crianças, mas também nos adultos o gosto pela palavra. ( foto )
Porque será que quando mais pequena e afastada de Beja é a aldeia mais as pessoas nos procuram?
Contos aquecem as noites de Salvada
Está um frio de Inverno e ainda assim, no dia dos Reis, o Pólo da Salvada resolveu celebrar com chá, bolos e contos os presentes ao menino. A Ausenda Féria é a mestre de sala e a junta encheu-se de idosos, adultos e crianças: a tia Anica, a D. Custódia, A D. Catarina , a D. Inês e os pequenitos Diogo, Rita , Luís.
Contamos contos e convidámos quem está na assistência para contar. Risos. Espanto. Os meninos pedem à Ausenda o da ovelha e o da carochinha e…chegam os homens do grupo coral para cantar os reis. São poucos, mas na sala todos ajudam. Ali na segunda fila uma voz melodiosa, antiga, destaca-se. Acompanha as vozes masculinas, mas ainda que discreta, destaca-se pela afinação. Chama-se a senhora Mariana Pacheco, mais conhecida por Mariana Bicho. Segura-me nas mãos e, entre risos e cumplicidades, conta-me de fugida duas belíssimas partes. Suspeito que esta mulher ainda vai dar que falar.
Passou um mês e desta vez, num sábado à tarde, mais um encontro na Salvada. O trabalho da Elsa vai caminhando e conquistando público para o Pólo. A sala voltou a encher e entre contos e cantos convencemos a D. Mariana Bicho a contar. Tapa na boca um sorriso envergonhado e conta. Tem ritmo, humor desenvoltura. Quando a sessão acaba e me sento ao pé dela para anotar dois ou três detalhes de rima. A conversa solta-se e vem o romanceiro cantado a preceito, os olhos molhados e o espanto pelo interesse de quem escuta. Sabe tanto esta mulher que me sinto de novo na idade dos porquês, embalada pela sua voz. ( Taquelim )
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