DIÁRIO DE BORDO

Num corrupio à roda da saia 

O grupo de idosos da Cáritas de Beja aguarda calmamente pelas Conversas Andarilhas. A sala está cada vez mais cheia, cada vez há menos espaço para circular, a roda "redonda" alarga-se a cada sessão. Não pode crescer mais!
Hoje as conversas chegam em formato de “Corrupio”.

De dentro de um talego de pano tiro um livro, leio o título e pergunto: o que será um corrupio? O grupo responde:" é andar num corrupio, andar à pressa."
-Vamos olhar para a capa. Quais são as cores mais importantes desta capa? Vejam aqui uma moça com uma saia  vermelha. Que corrupio será este?
Esta história fala do desejo de uma moça. Leio: “Desde menina que Maria tinha um desejo: ter uma saia encarnada.”

Falamos sobre os desejos que tinham em jovens e inevitavelmente chegamos aos bailes, à passagem de criança para jovem e ao namoro. Voltamos à leitura do texto: “ (…) e foi ao mover o corpo num jeito de valsa que Maria percebeu que não era apenas uma saia encarnada.”

Os bailes são referidos como o lugar de encontro entre jovens, idosos, crianças e sobretudo o encontro da aldeia, uma festa que criava alegria e convívio entre as pessoas. Todos queriam estar bonitos para o baile, pois era onde as raparigas podiam mostrar as roupas, os penteados, mostrar o jeito com que acertavam o passo e a sua delicadeza na dança e onde os rapazes também cuidavam da sua aparência, do jeito de olhar para ser certeiro. Era ali que se começavam namoros. Depois do namoro no baile vinha o casamento... e depois a mulher punha o avental e pronto, acaba-se tudo! O rodar da saia mudava, não se dançava com a liberdade de criança e jovem, como antes. A aldeia parava o rodar da saia.

A saia era redonda como as danças  de roda que se faziam a pares entre rapazes e raparigas enquanto cantavam ao som da harmónica ou da concertina e às vezes acertava-se no par como na história.

A memória é capaz de contrariar quem diz que não se lembra.
Apresentei vários vídeos de danças do Alentejo e se inicialmente o grupo me devolveu apenas o sentimento de saudade sem conseguir explicar como funcionavam as danças, durante  o visionamento dos vídeos das danças tradicionais ouvia-se baixinho "Ponha aqui o seu pezinho, ponha aqui ao pé do meu... ai ao tirar ao ao tirar o seu pezinho... ".

Em seguida foram escutadas apenas músicas com harmónica para identificação e no final ainda houve um par a dançar a valsa...



Moldura de sentimentos

Sessão de Leitura de Cueiros no Bairro da Esperança.
São 15 crianças de 2, 3 anos com dois anos de intervenção quinzenal. Coloquei na mala dois livros: Como te sentes? de Anthony Browne e Lobo Grande e Lobo Pequeno de Olivier Tallec.
Diz-me a intuição que é hora de começar a falar sobre o que vai por dentro, precisamos de falar do que somos, o que fazemos, dos nossos sentimentos, de como os exteriorizamos, como os lemos. Um livro pode ser um bom pretexto para esta descoberta.
Junto com a mala levamos também uma moldura de um quadro. Talvez consigamos retratar expressões e escolher a nossa melhor fotografia.
Quando chego todos sabem o que fazer, já se sentam, acompanham com gestos os “rituais” de começo de sessão.
Depois partimos para a exploração dos elementos dos rosto, como se mexem, que movimentos potenciam, conduzindo para a leitura do livro e após esse momento leio em voz alta o livro Como te sentes?. Escutam, reconhecem, comparam e procuram sentido.
No final com a moldura à frente do meu rosto faço todas as expressões referidas no livro: “às vezes sinto-me contente quando recebo um beijo da minha mãe, às vezes sinto-me triste quando alguém se vai embora, sinto-me zangada quando estou atrasada para chegar ao trabalho, às vezes culpada como quando parti a chávena da mãe...” e vou induzindo a participação.
Um a um, os meninos experimentam o sublinhar das diferentes expressões perante o grupo. Gostam de estar no retrato e quase que chegámos lá… ao adivinhar a expressão uns dos outros.
Voltaremos a esta proposta numa próxima sessão pois só aí poderemos perceber o que se consolidou.



Ervas de Cheiro

A ideia foi da Lénia. Usar Ervas de cheiros e falar das memórias que os cheiros e as ervas nos acedem.
Depois dos cumprimentos da praxe, a mala das coleções abriu-se cheia de canudos de papel de embrulho e dentro delas muitas ervas e meia dúzia de pequenos livros. Queríamos falar dos saberes em torno das ervas e chegar ao conto da Erva de Namorar do Breviário das Almas.
-Quem conhece essa erva? Para que serve? - Sabem outras: Barbas de milho para a bexiga, chá de cebola para a tosse. Erva Luísa, Lúcia Lima. Entram agora os poejos, os coentros, a descrição da açorda .

E a erva de namorar? Onde cresce. Servirá para que males. Desfiam-se hipóteses  e entramos na história. Extrapolam sobre o que poderá acontecer à rapariga que desafiando os saberes da mãe cheira a erva maldita. Acompanham bem o conto. Riem do desenlace, onde o ourives foge com a irmã da moça que cheirara a erva.
 

Como és tu Poesia?

Na sala há agitação e euforia, talvez seja a alegria da chegada do sol da Primavera.
A Sala está muito mais luminosa do que é costume.
Hoje começamos de pé em roda a Leitura de Cueiros em Beringel com meninos entre os 3 e os 5 anos. Aos pares os meninos vão ao meio para darmos os bons dias. Num jogo de concentração fazemos exercícios de movimento do corpo criando um gesto para cada parte do corpo a mexer.
Hoje  trago poesia.
-Sabem o que é? É brincar com as palavras. Querem ver o que fez Matilde Rosa Araújo a propósito de um bicho pequeno com muitas patas, preto, peludo que trepa as paredes e tetos e que constrói armadilhas de fio de seda, até há um herói com o nome de homem …
- ARANHA!!!
Pedi que imaginassem uma aranha pendurada no seu fio, balançando para cá e para lá, para cá e para lá. E começamos a leitura , balançando o corpo (…)  Aranha, anha tão muda e mole
Às vezes a poesia fala de bichos , outras vezes de segredos
-Vou contar-vos um poema  de Miguel Torga, um segredo!
A partir das imagens dos principais elementos do poema, fui induzindo até chegarmos ao poema “Segredo” de Miguel Torga.
Depois de repetido de várias formas encontrámos a cadência e melodia que associámos ao poema. Repetimos vezes sem conta e no final o grupo sabia  o Segredo, todo de memória
Mimamos o poema e num jogo de maestro da poesia, fui o maestro do diálogo entre dois grupos e propus que cada grupo repetisse o que eu dissesse e com ajuda da batuta. Ora um grupo ora outro. 
“És pequeno como um gato, uma andorinha ou um rato?
- Não sou tão pequeno não!”
Neste jogo cada grupo ora perguntava ora respondia até terminar o poema. Descobriram palavras e gestos novos. O poema decorado e cantado talvez funcione melhor, sei que nos divertimos e brincámos imenso com a linguagem. Na próxima sessão irei reforçar esta este trabalho talvez explorando a poesia através da expressão plástica.

 
Regressar ao Lidador

Assumimos mais um grupo no Centro Social do Lidador.
Fizemos a primeira sessão com sala cheia. A ajuda da equipa técnica do Centro e o ensaio do grupo coral foram preciosas. Obrigada pela colaboração! Talvez 40 participantes? Contámos, ouvimos opiniões, explicámos o que se pretendia fazer e marcou-se a segunda sessão.

A primeira sessão foi de natureza mais performativa, já que a dimensão do grupo deixava pouco espaço para escutar.
Começamos com a Bela Infanta - havia quem a soubesse todinha - saltamos para um conto sobre uma mulher e um urso de colar em forma de lua. Brincamos com o Corrupio e a memória dos bailes e feiras. Entramos nos contos do Breviário das Almas, aquele que fala dos olhos de um espanhol e de uns sapatos de verniz e da ida à feira de Sanlucar. Fizemos avaliação e tivemos uma nota entre o 9 e o 10. Estão entusiasmados.
Sabemos que na próxima sessão não estarão todos. Quantos regressarão?
Quinze dias depois … apareceu 1 senhora. Faz-se com um!
Quinze dias depois … apareceram 4. Faz-se com quatro!
Quinze dias depois … apareceram 4 (uma delas nova) e arregimentámos duas estagiárias! Faz-se com seis!
Nestas 3 últimas sessões fomos cruzando memórias e textos lidos ou contados: A Donzela Guerreiro do António Torrado com o conto da Marina Colassanti. Há quem se lembre do romance. Há quem se lembre de outra história de princesas. Há quem diga que a vida nunca lhe deu quem lhe contasse histórias. Há quem ligue com um fato da sua própria história: o dia em que com 18 anos abalou de Portimão, para visitar o pai na PIDE em Lisboa. Há quem fale de amores contrariados e se brinque com essa coisa especial de ser mulher guerreira de muitas maneiras diferentes. 
De vez em quando lemos um ou outro álbum ilustrado: “Como Começar” e “A gigantesca pequena coisa” .

Na última sessão lemos um texto do Manuel da Fonseca, grandote para o tempo de escuta do pequeno grupo. Memórias do seu primeiro retrato e ficamos de trazer um objeto e uma fotografia, que tenha a ver com aquele tempo na sua vida e sobre a qual queiramos contar uma memória.
Vamos ver o que acontece.
 

O Retrato

“No Verão, à sombra das amoreiras grandes do Largo o homem plantava a árvore dos retratos. (…) Chegava numa furgoneta cansada como uma mula velha, de resfolegar asmático e cores comidas por camadas sobrepostas da poeira dos caminhos (…)
Foi assim que o retratista, da autora Maria Conceição Ruivo, chegou ao largo e também a mais uma sessão das conversas andarilhas.
Os idosos envolvidos neste projecto da Biblioteca Municipal de Beja em parceria com a Cáritas Diocesanas de Beja na sessão passada trouxeram retratos antigos para partilhar com o grupo, no qual surgiram memórias do momento do retrato.

Também o retratista era protagonista deste registo e transformava largos, aldeias, feiras, jardins por onde passava. Aqui no Alentejo e nas terras destes idosos não foi diferente. Sempre que o retratista chegava “ enquanto se ouvia o bater do martelo nas ripas, a notícia voava nas asas dos pés descalços dos garotos, chegou o homem dos retratos! Chegou o homem dos retratos! e as mulheres começavam a abrir arcas, a encher ferros de carvão, a engomar camisas brancas. O retrato era um momento muito especial todos vestiam o melhor traje para o retrato.

Em Beja havia um retratista que por todos era conhecido: o Trabuco. Este fazia percursos por vários espaços, mas onde todos o recordam era no Jardim Público e no Jardim do Bacalhau. Às vezes perguntava : Queres com gravata ou sem gravata? Conforme a vonte do freguês fazia nascer uma gravata no papel que mergulhava nos baldes e que estendia a secar.

Como a fotografia pode ser tão importante …(…) o mocinho . Amanhã já não estará igual a hoje, depois de amanhã muito menos, de dia para dia vai crescer, encorpar, há-de ganhar barba bigode, ir às sortes, quem sabe se partir para a guerra de espingarda ao ombro. (…) Ao longo da nossa vida, o nosso mundo muda, nos mudamos mas para sempre num quadrado de papel fica a menina ou menino que fomos outrora.

O grupo respondeu muito bem ao texto, acompanhou, recuou no tempo, sorriu a D. Elisa com os seus mais de 90 anos recordou o dia em que tirou um retrato, aos 11 anos talvez, com um vestido muito bonito, um vestido inspirado no vestido de noiva da sua irmã mais velha, quando foi como aia de sua irmã. Ali ficou para sempre uma menina de vestido leve, ondulante, sapatos escuros de presilha, malinha na mão, cabelo esticado anos vinte, olhar atento, olhos enormes, quase uma senhora, não fosse o pirolito (chupa) na outra mão denunciar esta criança.

Nesta sessão apenas de retratos, de memórias de retratos, das pessoas que fomos e de quem somos.

A máquina de fazer poesia



Estivemos no sábado a fazer mais umas conversas Andarilhas, desta feita em Stª Vitória, 17 almas em volta da Poesia, do Miguel Horta e da máquina genial que  ele inventou. Tivemos casa cheia  e a presença de dois poetas o  Miguel Horta e Senhor Heitor: o primeiro trouxe um verso escrito à mão,  numa folha de linhas, o segundo a impressão do seu próximo livro: Rimas Salgadas.
Conversámos muito. Lemos textos a D. Rosa trouxe a pedido,  as fotonovelas que lia em rapariga, quando servia no Porto e as escondia por cima do autoclismos  não fosse a senhora encontrá-las. Era ali , bem sentada que as lia de fugida.  Houve quem fosse ao cabeleireiro. Quem trouxesse uma amiga. A D. Felizarda  devolveu com entusiasmo o livro que levou da Nau Catrineta, mas a conversa sobre os livros que temos lidos será para o próximo dia. Hoje viemos conhecer o Miguel  e responder ao  desafio que este nos trás.


Uma  toalha de mesa de papel, um marcador grosso, um pequeno caderno de post it a fazer de malha e o desafio fazer poesia. O Srº Heitor  explica como faz os pontos e sublinha: Há pontos difíceis, camisa é um ponto muito difícil.
O Miguel provoca: pisa, Tamisa. O  senhor Heitor argumenta e exemplifica pontos fáceis e acaba por dizer um dos seus textos. Está velho, o Srº Heitor,  às vezes perde-se e o texto demora a chegar. Outras vezes entusiasmas-se e as quadras correm limpas e seguras como um relógio. O grupo é generoso com o Srº Heitor e escuta. O Srº Heitor tem consciência disso e todas as sessões, entrega-me um papel com uma cruzinha no canto,  com o poema manuscrito em letras de forma, para eu ler na sessão. O Srº Heitor já não consegue ler bem e gosta de ouvir os seus poemas em voz alta. Quando me engano numa palavra, ele corrige, como se a tivesse exata na memória.
Começam a sair os poemas. Brinca-se atirando a malha e da associação de dois ou três palavras começam a surgir pequenas, poemas:



A nuvem deixa a seara regada e fresca

A abelha no campo parte estranha para a flor

A amizade é lume que queima

Ribeira e Mar estamos em águas


… e fomos por aí fora até ao lanche, usando a máquina e escutando poemas e conversando sobre os textos e autores que o Miguel trazia. Esquecemo-nos das pragas. Eles haviam de gostar.



A propósito da história da CARTA

Temos quase dois anos que trabalho – pouco mais de uma dezena de sessões - no centro de dia de Cabeça Gorda com o grupo de idosas que ali se reúne para o chá e torradas.  Às vezes o menu altera-se e aparecem as travessas de cachola com sangue ou as fatias douradas, acompanhadas com café de cevada e chá. Outras vezes somos interrompidos pelos vendedores ambulantes que entram para perguntar se queremos queijos, linguiças, paio. Às vezes rezámos por alma de alguém.
- Vamos lá nós rezar por alma dela – lembrou-se no outro dia, uma das senhoras a propósito do desagrado como se tratam hoje as missas por alma. Rezaram todas em uníssono. Eu acompanhei em silêncio dividida e espantada: deixar-me embalar naquela reza ou documentar a forma natural como o sagrado e o profano se unem em roda daquela mesa.
Das oito senhoras presentes na sessão de hoje, 7 são analfabetas. Contrariamente a outros grupos , este não está a crescer. 


Chegámos quase sempre em cima das 16.00H. Talvez seja tarde para o grupo? Dizem que não.
Hoje resolvi pegar no conto tradicional “ O Homem da Gaita Maravilhosa “ e no livro com o poema do Zeca magistralmente ilustrado por Rui Pedro Lourenço. Gostam de escutar histórias – lidas, contadas e cantadas - e riem quando lhes mostro as ilustrações e vou trauteando aquela música conhecida(...) Havia na terra, um homem que tinha, uma gaita assim de pasmar(...)
Falámos do Zeca, das memórias que temos das músicas do Zeca. Falámos de como a mesma história pode ser contada de tantas maneiras possíveis. Vimos duas, mas cada uma de nós contaria esta história de maneira diferente. Há quem diga que não conseguiria fazê-lo porque não sabe ler. Há quem discorde: ler e contar são coisas diferentes. Pode-se contar sem saber ler. Para contar basta pensar e saber as palavras para dizer.

Volto a falar sobre uma conversa que tivemos no ano passado sobre a utilidade de saber ler e escrever. Recordam-se. Lembram-se de me terem dito:

 – Sempre fizemos o mesmo que as outras. Crescemos, trabalhamos, tivemos filhos, vivemos. Por isso somos mais espertas do que os que aprenderam.

Lembram-se, mas já não concordam. Extremam-se posições. Aliás é um grupo onde rapidamente se extremam posições. Há quem diga que ter aprendido a ler e a escrever poderia ter ajudado a melhorar a vida. Há quem não se envolva.  Há quem diga que sempre aprendeu sozinho, até a escrever nos computadores. Quem isto afirma, é a única senhora alfabetizada do grupo, a mais nova.
A propósito vem a história da CARTA (…) Uma mulher da Cabeça Gorda, antes do 25 de Abril , fica viúva com dois filhos para criar. Não arranja trabalho e resolve partir a salto para França deixando as crianças ao cuidado dos pais.  Como não sabe ler nem escrever,  leva um papel com a sua morada e combina com os filhos como dará notícias. Se receberem uma  carta  com cruzes  é porque as coisas correram mal. Se receberem uma carta com flores e pássaros é porque as coisas estão a correr bem. Um mês depois as crianças recebem uma carta com flores e pássaros. Bonita história.


A vida dá histórias bonitas. Mas também existem lindas histórias inventadas. Sim porque esta história só pode ser uma história inventada. Abro o livro e mergulhamos numa pequena leitura em voz alta de um conto de Marina  Colassanti: Onde os oceanos se encontram(…)  Existe um lugar onde todos os  oceanos se encontram, e ali no meio, uma pequena ilha.

- Tem de lhes explicar o que é uma ilha? – sugere alguém  da assistência. Explico... e começamos por conhecer Lânia – nome estranho , podia ser Lena – e Lisiope , podia ser Lina. ( Marina vai perdoar-me a falta de rigor )


Lena e Lina duas irmãs ao serviço do mar que  no regaço da praia, vinha depositar seus afogados.Cabia a Lena, a mais forte, tirá-los da arrebentação. Lina, a mais delicada, cuidava de lavá-los com água doce da fonte, para depois envolvê-los nos lençóis de linho que juntas, as irmãs teciam. Juntas, também, elas os devolviam ao mar, para sempre. Nessa tarefa que nunca se esgotava, as irmãs passavam os seus dias, sem trocar muitas palavras entre si. Foi num desses dias que (...)


 … estão presas. Vou alternando pedacinhos de leitura, com pequenos momentos de narração e continuam presas … páro , escuto, olhou – há quem dê opinião e verbalize ter conhecido ódios assim. Quem já tenha vivido rivalidades semelhantes. Contam-se casos. Regressamos à história lida e contada até ao fim, exactamente na altura em que entra o tacho das papas para o lanche. Ora isto é que se chama temperar a alma e o corpo. As papas estavam deliciosas.

 


Já tinham vindo  alguma vez à biblioteca?

Preparámos a sala do sector infantil com papel, guaches, esponjas e bolinhas de plástico e na Bebeteca e a mala no chão com os livros lá dentro. Aproxima-se a Páscoa e talvez este tema possa servir de pretexto para falar de maternagem, de ninho, de cuidar e proteger.


Espreitei à porta de trás e nada. Espreitei à porta da frente e quase no cimo das escadas as mães com os filhos de 3 anos ao colo vêm exaustas, com a pele mais morena do que na última sessão, denuncia a exposição prolongada ao sol dos últimos dias, à vivência da rua.

Hoje a sessão começa num espaço diferente as mães e filhos da Leitura de Cueiros da Cáritas vieram até à biblioteca para mais uma sessão.

Perguntei ser queriam conhecer a biblioteca, ao que me disseram que não, estavam cansadas e queriam sentar-se.
- Já tinha vindo  alguma vez à biblioteca? – perguntei eu.

No meio do grupo surge a voz de uma mãe, das mais novas, a dizer que já ouviu histórias aqui, quando andava à escola. Ao ver a colega Luzia reconheceu-a e indicou-a como contadora. Das histórias, essas, já não se lembra, mas parece feliz por aqui estar.


Mostrei o sector infantil e logo se sentaram foram buscar jogos e começaram a brincar com os seus filhos nas mesas, facilmente se apropriam do espaço, tal como as crianças, mexem nos objectos, mostram curiosidade…

Encaminho-as para a sala da bebeteca e de repente ficam encantados a olhar para o espaço. As crianças parecem  mais agitadas do que é normal, a olhar, a mexer e a brincar. As mães também.


Após a canção de início exploramos o corpo, o rosto, nomeamos todos os elementos do rosto, as mães acompanham com os filhos. Descobrem as bolas gigantes, brincam os filhos e as mães, uma bola a cada par, e (…) tão balalão cabeça de cão orelhas de gato não tem coração (…) e balança para cá e para lá, para a frente e para trás . O mais pequenino olha com desconfiança mas acaba por ceder e entrar na brincadeira. Utilizando apenas uma bola gigante todo o grupo conta os ovos da galinha Penaplana. Chegarmos à mala que guarda o livro “Os Ovos Misteriosos” de Luísa Ducla Soares. Durante a leitura senti o grupo preso à narrativa, surpreendido com os animais que saíam dos ovos.

Seguimos para a sala da pintura e em cima da mesa foram colocados ovos desenhados no papel para pintarem com os materiais disponíveis. Todos de olhos postos no papel com muita espontaneidade fizeram surgir manchas de cor, novas cores, com impressões e com digitinta. As mães brincaram com os seus filhos, explorando cores e formas e numa brincadeira a pares, as gargalhadas invadiram a sala. Enquanto isso os homens esperavam  à porta da biblioteca.


Ervilhas para verdadeiras princesas


Hoje é dia de mais uma “ Leitura de Cueiros” desta vez em Beringel com crianças  entre os 3 e os 5 anos. Há um ano que trabalhamos com este grupo, com sessões quinzenais enquadradas no projecto Dos livros sem páginas às páginas dos livros.

Sabemos que quinzenalmente, quando se abre a porta, seremos bem recebidos e a sala enche-se de sorrisos e perguntas:
- O que trazes hoje na mala?
- Hoje trago uma surpresa!

Assim que pouso a mala no chão todos os meninos se sentam à minha frente de olhos bem abertos cheios de curiosidade e com sede de histórias. Os nomes de cada uma são distribuídos. Já sabem distinguir o seu nome e ficam orgulhosos quando o encontram.
O início da sessão é sempre marcado com uma canção, onde todos participam dizendo o seu nome. Com alguma cumplicidade olham uns para os outros  e sorriem, à espera que chegue a sua vez, é curioso ver a forma como reagem.

- Trago uma história muito antiga com um  rei. Alguém sabe o que é um rei?
- O rei tem espadas, cavaleiros e mora num castelo - diz o Rodrigo.
Depois de partilharmos os símbolos do rei, o seu poder, com quem vivia, o espaço onde morava, entramos na história “ O Reizinho das Flores”  de Hans Gartner. Apresento a  capa, leio o título e pergunto:
- Como será este Rei?
- Pequenino! - Gritaram todos!
- Será que era como os reis que vocês conhecem? Vamos ver!
Mergulhamos na história e todos aprendem uma palavra nova  "bolbo", eu explico do que se trata e a Maria fala das bolinhas do quintal e o Dinis diz que tem no quintal bolinhas na terra para crescerem flores.
Os momentos de passagem na história são marcados com o som dos trompetes   (tum, tu, tu) e todos imitam as passagens sem que tal lhes seja solicitado. Mantêm-se atentos aos pormenores do livro.  A história é muito simples e no final apresenta o casamento do rei com a princesa.
- O que é uma princesa? Quem pode ser princesa?
- Tem uma coroa, é bonita, tem vestidos assim (pelos pés). - diz a Ana.
- Uma princesa é delicada, sabe bordar, sabe comer à mesa de talheres, dorme numa cama muito grande e fofa, tem criados como o rei  e também vive num castelo.
"Uma história muito antiga é a que vos vou contar da menina que sonhava ser princesa e com um príncipe morar."  
- Era uma vez... - e começa uma história de uma princesa escolhida (narração oral).
Também aqui as flores são um elemento importante da narrativa. Há histórias de princesas com flores e há até histórias de princesas com legumes. Que legumes verdes que conhecem?
- Maças verdes, feijão verde!  O Dinis foi buscar o seu brócolo verde em peluche.
- Muito bem! Qual é coisa qual é ela, redondinha pequenina, que parece uma bolinha, verde verdinha, para comer toda, todinha...
- Uma ervilha!!!! Disse  a Ana.

Ainda tivemos tempo de contar a história da Princesa e da ervilha e explorar as ilustrações do “ Ervilhas Para Verdadeiras Princesa” da Editora Éterogémeas. Observámos  cores,formas, os momentos da história que os ilustradores escolheram, a expressão facial das personagens, os pormenores da ilustração. De seguida propus que desenhassem a ervilha e a princesa e ao som de uma caixinha de música os meninos desenharam com a técnica de pastel, uma experiência nova, surgiram ervilhas amarelas, verdes azuis, todas redondinhas. E o tempo que restava parecia pouco para terminar o trabalho, já que se deliciaram a experimentar a técnica.

Surgiram trabalhos interessantes, alguns meninos desenharam também o rei, o castelo, uma princesa redondinha e pequena como uma ervilha, de cabelos compridos com uma coroa na cabeça. Esta foi a primeira experiência de expressão plástica que temos de repetir. Percebemos que gostaram da proposta e que a perceberam, já que as imagens da história foram fluindo à medida que se desprendiam da técnica.
 


Histórias para fazer Tem Tem

No corredor da entrada, num pequeno estendal estão o nome dos meninos do clube das Histórias Para Fazer Tem Tem.
O nome da atividade surge de uma expressão da cultura popular, quando se pedia à criança para fazer um tem tem, ou seja, manter-se de pé em equilíbrio ainda sem andar. Este clube é dirigido a pais e filhos com idades entre os 9 e os 24 meses e funciona há já um ano, todas as semanas.

Os primeiros passos até à sala da Bebeteca, muitas vezes, começam ainda no colo da mãe. Só depois de descalçar os sapatos e tirar casacos é que se pode ocupar o nosso lugar na sala. Na entrada já se ouve a música que sugere que estamos à espera de mais X elementos. Os meninos identificam o seu nome com os pais, gostam de o repetir e de o colar na blusa

Depois começamos:
- “ Fui às histórias de tem tem, para histórias escutar” … - a canção de abertura dá as boas vindas aos pais e aos filhos introduzindo os seus nomes na canção que todos conhecem de cor. Faz parte da rotina da sessão e reforça a pertença ao grupo.

Hoje começámos pela exploração do corpo através da lengalenga da formiga, que sobe e desce convidando à nomeação de partes do corpo. Uns sentam-se perto das mães que cantam e servem de “ponto”, outros trocam o colo da mãe pela proximidade física comigo ou com a mala que sempre me acompanha. Já ganhámos proximidade. As palavras que digo são imitadas com prazer.
A história de hoje é um conto cumulativo com alguns personagens do quotidiano e permite recorrer a diálogos, vozes e onomatopeias. Escolhemos uma ampliação caseira do livro e dos personagens do “ Coelhinho Branco” editado pela Kalandraka.

O Francisco, talvez por ser o seu primeiro dia, esteve sempre no colo da mãe, só agora que o livro se abriu quis ver de perto que ia acontecer. A princípio outras crianças dirigem-se na minha direcção e do livro mas, à medida que a história se desenvolve, ficam a olhar atentos de olhar fixo e mãos caídas.
O Gonçalo sempre que uso as onomatopeias dos animais, faz questão em adivinhar o nome dos bichos e mostra contentamento quando acerta. A cabra Cabrez – a vilã da história - é recebida com respeito, a formiga – heroína de pequena dimensão - com contentamento. Será ela a resolver o problema que afecta o coelhinho e os seus filhotes. As histórias também servem para iluminar os problemas e apontar as respostas.

A escuta chegou ao limite, mas ainda temos espaço para algumas variações de exploração dos ritmos: lento, apressado, alto e baixo. Repetir e repetir. Os mais pequenos olham atentos para os mais velhos que naturalmente se oferecem como modelos. Estamos com trinta e cinco minutos de sessão e ainda temos escuta. Bem a tempo de cantar o “adeus” e explorar livremente os materiais utilizados.
Até para a semana!



Viver o Hoje com Alegria


Hoje a sessão das Conversas   Andarilhas,  com o grupo de utentes do apoio domiciliário da Cáritas Diocesana de Beja,  começou com uma música estranha.
Escutar sons diferentes daqueles que ouvimos  habitualmente pode ser um desafio interessante. Perguntámos que música seria aquela e logo a D. Inácia apressou-se adizer,  apontando para a capa do cd: - É do Japão!

Dos  12 idosos que constituem este grupo , a maioria é alfabetizada  e estão atentos a tudo o que trazemos para as sessões. Partimos da música para falar dos ambientes que ela nos sugere, sobre as emoções e imagens que podem habitar um pequeno trecho musical.

A pouco e pouco vamos construindo oralmente o espaço  para a história: florestas, montanhas árvores e flores, jardins verdes com regatos a correr e no meio uma casa de madeira com uma varanda para o jardim. Uma casa pequena, cheia de luz, nela morava uma família pequena: um homem, uma mulher e uma filha que era o retrato vivo de sua mãe. Chegámos aos personagens.

O espelho ou retrato vivo, uma história de Sophia de Mello Breyner Andersen, baseada num conto japonês foi o conto escolhido para ler em voz alta. Uma história delicada, pretexto para falarmos dos que partiram, do efeito do tempo sobre cada um de nós, das memórias que guardamos, do nosso crescimento como seres humanos. A escuta é atenta.

Depois da mãe morrer a filha abriu a caixa, olhou para o espelho e sorriu, tal como tinha prometido à sua mãe. No espelho viu a mãe a sorrir também, cheia de vida e  juventude.
E se fizermos como ela ? Se nos sentarmos a sorrir para um espelho?
Propusemos que formassem pares, que um segurasse no espelho enquanto outro desenhava com caneta sobre um acetato os elementos do seu rosto (olhos , nariz, sorriso).  Depois trocámos .
À medida que avançam na proposta  as gargalhadas assomam e a pouco e pouco inundam a sala. Rir com gosto é coisa que há muito tempo não se faz.
-Nem me lembro há quantos anos que não me ria assim! Faz falta rir!- disse a D. Silvina
- Desde que o meu marido morreu nunca tinha rido tanto, antes eu era assim alegre, sempre a rir e a brincar. – reforçou a D. Maria.

A maioria dos idosos do grupo desde o seu tempo de escola primária que nunca mais desenhou. Verbalizam que nunca tiveram contacto com imagens. Hesitam, mostram falta de confiança, inibição, mas não recusam participar. Aceitam o desafio e das mãos trémulas lá vão saindo , um a um  os auto retratos.

Nem sempre as sessões correm como programamos e tudo o que acontece de surpreendente faz-nos reflectir: será que riam de si próprios? Do seu rosto, das rugas, da representação gráfica que foram capazes de fazer de si próprios? Sentir-se-iam ridículos numa actividade que associam à infância?

Talvez na próxima sessão quando introduzirmos as cores, consigamos perceber. Para já ficamos com a sensação de que conseguimos muito mais do que um sorriso ao espelho: rimos juntos, cúmplices vivendo o hoje com alegria.




10 meses de avanços e recuos

Estamos no Inverno. O frio arrepia a pele, chove. Três mulheres grávidas, carregadas com as suas crianças atravessadas na cintura, avançam em passo acelerado. Cobrem a cabeça das crianças com cobertores e passo a passo sobem até à cidade. De quinze em quinze dias é assim. Vêm do Bairro das Pedreiras para mais uma sessão de leituras de cueiros, uma parceria com a Cáritas Diocesana de Beja, no âmbito do projeto dos "Livros sem página às Páginas dos livros".

Foi assim hoje, a chuva cerrada caiu mesmo na hora da sessão. Rostos magoados, cansados. Não consigo perceber - ainda - se o esforço é feito por obrigação, responsabilidade, ou porque a qualidade dos momentos com os filhos e com o grupo é compensadora, mas quero acreditar que as memórias das sessões se entranhem pela pele como a chuva que deixa assim encharcadas”.

Peço que puxem uma cadeira e se aproximem de mim para falarmos e a verdade é que se aproximam, muito, muito até formar um círculo fechado, mais fechado e mais próximas do que quando começámos. Assim juntinhas podemo-nos olhar nos olhos e falar entre mulheres, como mães.


Os olhos a brilhar a curiosidade do Josué quando me vê chegar de mala na mão, não é nada indiferente. Sinto que as crianças estão encantadas, de olhos postos no que eu digo, canto, mostro e nos objetos que faço aparecer. O Josué começou a vir às sessões há cerca de 10 meses, já adquiriu a marcha, está cada ver mais expressivo e reage muito à minha presença, ri, grita, estica os braços e vai ao encontro da mala. Mexe, explora, procura o meu olhar. Estes olhos cor de azeitona fazem-me ficar feliz.


A sessão é para as crianças - pensam as mães. As sessões são para as mães – sabem as crianças. É preciso tecer uma teia que reforce a relação mãe / criança e as envolva neste processo de responsabilização comum.

À história do coelhinho branco seguiu-se uma cantilena a pares, depois uma brincadeira de exploração e nomeação do corpo: “ Fui ao mercado comprar café, veio uma formiga e picou-me no meu pé eu sacudi, sacudi, sacudi… crianças e mães brincam enquanto os dedos vão avançando pelo joelho, coxa, rabo, mão, rosto até … Exploram-se alguns materiais a nível sensorial, descobrem-se formas, cheiros, texturas.

A fechar esta primeira sessão do ano resolvi perceber quais as expectativas, os desejos, sonhos destas mulheres para as suas vidas, para a vida dos seus filhos e para as nossas sessões.

- O que podemos fazer aqui que acrescente alguma coisa às vossas vidas? Com o que sonham para as vossas vidas e dos vossos filhos? As respostas foram unânimes:

- Uma casa. Uma casa onde não chova, onde haja mais espaço.

A saúde dos filhos é o que mais ambicionam, apenas Telma falou na educação que também é importante para os filhos:

- Para aprenderem mais e assim... - pedi que explicasse melhor. Hesitou:

- … sabe, não sabemos explicar estas coisas”.

Só assim percebemos como a ausência de palavras nos limita na relação com os outros, na expressão do que sentimos e pensamos. Como pode uma mulher dizer o quanto ama seus filhos sem palavras? Como pode uma mãe falar dos seus sonhos, se não os consegue arrancar de dentro de si? Ficamos sem voz. Foi isso mesmo que senti: um grupo sem voz, incapaz de expressar a palavra e o sonho.

Existe uma necessidade crescente em trabalhar com as mães destes meninos. Temos de conseguir fazer estas sessões na biblioteca e possibilitar com isso outras experiências, vivências. Temos de encontrar condições para transportar as grávidas e as crianças. Sinto que preciso conhecer muito mais desta identidade tão marcada. Preciso entender o que é ser mulher neste micro mundo e que regras, vontades e limites regem as suas vidas.

Temos 10 meses de avanços e recuos. Um trabalho ainda frágil e que por agora ganha sentido na resposta, no entusiasmo, das crianças. Mas como envolver as mães?





Por vezes  o nosso trabalho é apenas  estar junto.



É dia de trabalho na Cabeça Gorda.  A Helena  fazendo as 3 paragens com a Carrinha e eu em mais umas das  conversas andarilhas.


A última sessão foi dinamizada pela Helena Ribeiro. Falaram de cartas: escritas nos tempos em que estiveram emigradas, das cartas e das histórias de quem as escreveu. A propósito de uma Carta de António Mota contam a histéoria daquela mulher analfabeta que foi para França e não sabendo como dar notícias aos filhos,  combinou enviar uma carta com cruzes  ou com flores , conforme a vida lhe estivesse a correr mal ou bem. Passado um tempo as crianças receberam uma carta com flores. Fortunada – comenta quem sabe que nem para todas foi assim .

Quem naquela roda está  conhece bem as histórias da emigração. A ela voltaremos com o livro Emigrantes de Shaun Tawn . Por agora contam-se histórias de quem também emigrou. Memórias de cartas de amor existem poucas, no seu tempo  o que se escrevia eram os bilhetihos e as palavras conhecidas mal davam para escrever um bilhete. Quanto mais para uma carta. Das 10 presentes  8 são analafabetas.


A Helena Ribeiro leu cartas, poemas  e até contou  o enredo de alguns livros onde as cartas foram alimento para o coração e para a alma. 

Hoje cabe-me a mim fazer a sessão. Irei ler-lhes uma carta que lhes escrevi a falar sobre as mamanas Moçambicanas e as suas capulanas. Estou desejosa de lhes mostrar a capulana que escolhi para oferecer para a rifa da viagem das reformadas e ler o Mia Couto mas… ao entrar percebo que hoje não haverá sessão.


Olhos magoados, muitas lágrimas e a necessidades  de contar o que aconteceu com a Beatriz. Não faremos sessão mas  ficaremos na mesma,  juntas, falando dela, pranteando.



Começamos a perceber o que são as Conversas Andarilhas: umas  vezes  um lugar onde se conta, lê, escuta, recorda, fala,  canta, ri e outras vezes,  apenas uma forma de manter  vivas  dentro de nós as pessoas que perdemos, celebrando-as, falando da nossa impotência face à morte, dos mistérios de Deus e dos homens, estando juntos quando a vida nos tira o tapete e nos faz duvidar. 

Ganhamos consciência de que por vezes  o nosso trabalho é apenas  estar junto.  
 


E foi lindo de ver!

Semana longa esta: Albernoa , Baleizão, São Matias e Beringel , Salvada. Crianças, idosos, 6 grupos corridos , 8 paragens da Andarilha.
Terminei a sessão e ponho-me a caminho. Vou apanhar a Helena Ribeiro ao cruzamento entre Salvada e Cabeça Gorda. Está um frio de cão. O Sol ilumina sem aquecer. 
Na mão,  levo a mala das coleções e lá dentro meia dúzia de livros. - Ora ! Já cá passamos mais um belo bocadinho!  - A frase do senhor dos óculos escuros ainda me baila na cabeça.
O grupo é muito grande e muito diferenciado. Há quem esteja ali por inteiro , alguns condicionados no gesto mas não no pensar , quietos  mas ativo, atentos. Há também quem partilhe opinião , conte , recorde. Há aqueles a quem a cabeça teima em cair e o corpo ou a fala que não obedece. Há os que urgentemente precisam de outro trabalho na área ocupacional e psicomotora. Há também quem durma  ou ria  sem propósito ou razão. Temos andado preocupados com este grupo e hoje resolvemos experimentar de outra maneira. Melhorar as condições de escuta, dar-lhes mais tempo para participar: dividimos o grupo ao meio , escolhemos um espaço mais confortável . A coisa fez-se animada.


Hoje conseguimos escutar toas as vozes: uns contando de memória , reconhecendo contos , associando a outras histórias.
Até aquele romance que quase todos sabiam vagamente  e sobre o qual nunca haviam pensado, o da Bela infanta. Canto duas estrofes e narro introduzindo mais elementos.
Estava a bela Infanta | No seu jardim assentada | com pente de oiro fino seus cabelos penteava – conto que havia um  castelo e nele uma mulher tão bela que todos lhe chamavam bela infanta. Seu marido tinha partido para  longe, um dia quando penteava os seus cabelos com um pente de oiro fino – Jogou os olhos ao mar/ viu vir uma grande armada / Capitão que nela vinha / muito bem a governava – ai quem seria? , pensou a infanta ….

E foi lindo de ver: havia quem murmurasse pedacinhos de texto, os olhos a brilhar, o prazer da escuta, o encantamento nos rostos cheios de rugas.
A partir dali fomos viajando nas  histórias contadas, nas memórias de terem sido um dia embaladas nesse cante. E chegamos ao menino, às Janeiras e aos dizeres antigos como aquela pérola dita pela D. Custódia:
" Minha mãe quem é aquele pregado naquela cruz ? Aquele filho é Jesus. A Santa imagem dele. Minha mãe quem é Jesus? É  o filho de Deus na Terra . E quem  É Deus ? É quem nos cria , quem nos deu a luz do dia, quem fez a Terra e os Céus … " (Precisamos de o registar em vídeo) - diz coisas lindas aquela mulher, também as sabe apimentadas e muitas vezes experimenta-me :
- Venha cá para eu lhe contar uma … mas é das apimentadas – avisa à cautela.

Como a escuta ainda estava alerta, fechamos  com chave de ouro retomando histórias conhecidas como a do velho, do rapaz e do burro, ou a do Homem da Gaita, contado a par. Rimos!
Não fizemos avaliação, aquela de um a dez, com que terminamos as sessões, mas quase que aposto que teríamos dado nota 10.

Ah! é verdade... Lénia, Luzia, Paula, Lena, quando tínhamos concluído que as nossas mulheres não sabiam cantigas de embalar, porque não tinha tido tempo para embalar as crianças, eis que uma senhora hoje disse: Toda a minha vida escutei essa cantiga que a minha mãe me contava e só hoje percebi o que queria dizer. Será que dará um livro de pano?


Vejam lá o filho de uma magana!

Regresso de uma pausa de férias  e curiosa por saber o que aconteceu. Na minha ausência foi a Luzia quem fez  as honras da casa e levantou umas quantas histórias de leitura. Chegam agora as provas , um velho saco , cheio de fotonovelas, as mesmas que a D. Francisca , tinha escondidas por cima do autoclismo, na casa da Senhora. Tinha onze anos e servia no Porto.
Chegam mais duas senhoras e trazem à baila a história da D. Assunção? A Senhora da saquinha. Conhecem? Contou a Senhora  e eu acredito , que em menina, porque o pai não a deixava ir à escola,  todos os dias esperava as afortunadas que podiam ir para a Mestra e oferecia-se para lhes carregar a saquinha.
O grupo reúne-se lentamente.  Perguntam sobre a minha viagem e em torno dela começamos sessão. Uma  toalha de papel  serve de  folha e em cima dela coloco 2 objetos : Uma  caneta esculpida em pau preto , as estórias Abensonhadas do Mia Couto . Vamos lá adivinhar o que andei  a fazer? Registamos palavras a propósito daqueles objetos : Livro , caneta, escrever, ler, histórias. Ensinar, aprender.
Cada objeto é manipulado demoradamente e a escuta é atenta.
- ... e jurei a mim mesma que quando nos voltássemos a encontrar vos iria ler este conto. Chama-se o baile?
Quem o escreveu? Terá sido um homem ou uma mulher? Levantam-se hipóteses, adensam-se mistérios. Talvez a leitura do conto possa dar uma pista.
Leio a primeira frase: “ Mulher , hoje  vamos ao baile”- Quem terá dito esta frase? Será que é outro conto sobre a saia encarnada da menina, que lemos no outro dia?
Passo a passo, frase a frase , a leitura vai correndo, pontuada por momentos em que se conversa sobre o lido. às vezes não percebem as palavras mas intuem o sentido do texto. Convidando-as a se projetarem no dilema, história ou vida deste ou daquele personagem. Cada uma antecipa razões, dá exemplos,  confirma o que pressentiu. 20 minutos de leitura e conversa participada e animada. Todas conhecem histórias quase parecidas.
Agora fala-se do que leva uma mulher a nunca reparar em si  , depois  do significado do gesto  daquele  homem que nunca reparara na sua mulher  e que um dia resolve  oferecê-la ao mundo.  Por instante sublinham-se as formas especiais de falar da dor.  Há  comoção nos olhares .

Vinte minutos para concluir que a história é contada por uma mulher chamada Mia Couto!

Quando se descobre que o Mia Couto que nos emocionou foi escrito por um homem ,  um escritor Moçambicano, há risos  : -  Vejam lá o filho de uma manana!  - e fico sem perceber se se referem ao escritor ou ao homem, personagem da história.
Juntam-se agora ao grupo,  mais 3 senhoras, mesmo a tempo de outra partilha. Somos agora somos agora 11.
- Trago-vos outro livro e este acabadinho de sair do Forno. “A Minha Boca Parece um deserto “
 Lemos imagens, gestos, construímos relações entre elementos da ilustração, falamos sobre as autorias, também do título e mergulhamos na leitura do texto…  Conhecemos as angustias de um pai , os pensamentos da mãe e da sogra, os sonhos de uma menina …  expressas em frases , nas ilustrações  que quase parecem dizer isto ou aquilo e… ficamos a meio do livro cheios de vontade para descobrir  como  os autores vão amainar essa sede.

Para perceber qual é o seu tempo de escuta ou maior atenção, temos de estar a ler permanentemente o rosto e o corpo . Eles são as melhores pistas  e sabemos que quando o olhar se alheia e o corpo se remexe está na hora dos beijos , dos abraços,  de comermos o arroz doce da D. Isabel  e dizer adeus. O Luís Murteira , do Pólo da Biblioteca na freguesia, levará à aula de ginástica outros contos do Mia Couto e recordará  o dia das próximas  conversas andarilhas. 
No caminho fica-nos aquela sensação de que somos  sempre uma infinita parte do que conseguimos expressar  e nunca existirão palavras suficientes  para  contar o que aconteceu em cada peito, em cada olhar . Temos de trazer cá o Jorge Serafim,  o Zé Francisco e a Georgina para provarem o arroz doce da D. Isabel.



Dia primeiro de janeiro e um DIÁRIO DE BORDO a estrear.
Sigam-nos!

Hoje é dia primeiro e começamos um novo caminho: Um diário de bordo onde queremos partilhar o que acontece -  ao abrigo do projeto “ dos livros sem páginas à página dos livros “ financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian – com os nossos grupos de continuidade .
Desde o princípio sabíamos  que os Largos, aparentemente desertos, estão cheios de estórias  e que a única maneira de recuperar essas estórias é dar voz a quem  as viveu . Tivemos de procurar quem tinha memória nos largos das aldeias, agora desertos e isso conduziu-nos a Lares, Centros de Dia, Centros Comunitários, às vezes  casas, escolas.

Desde o principio que dissemos que este projeto girava em torno das PALAVRAS  , não para formar leitores , mas para proporcionar experiências leitoras . No caminho percebemos que a este papel se devem  juntar outros  : o combate sem trégua ao isolamento social e cultural, às iliteracias, o reforço do tecido social das comunidades e a identidade de um território.
São mais de trinta o número dos idosos que participam nas sessões da Salvada. Na semana passada em  Cabeça Gorda  e  Santa Vitória, mais de 24 , quase todas mulheres. Em Albernoa  uns 10, talvez seja o grupo com menos autonomia.

São mais de trezentas as crianças e famílias tocadas por este pequeno projeto: Salvada, Cabeça Gorda, Beringel, Bairro da Esperança, Baleizão, São Matias, são algumas das freguesias onde já se está a trabalhar a todo o vapor , contando com a colaboração das juntas, dos docentes – pequenos grupos, ação discreta , em continuidade.
Passo a passo, vamos desenhando o caminho, carregando muitas dúvidas na forma de o fazer, tendo cada vez mais a certeza que o trabalho de uma biblioteca também passa por estar em todos estes lugares,  possibilitando momentos de evasão e de expressão das memórias do vivido e do sonhado.

Recordamos cada uma das sessões e descobrimos que já passou um ano de projeto, que temos poucos registos , que só agora começamos a conseguir sistematizar e avaliar o que vai acontecendo. Neste campo, como em muitos outros campos do trabalho de uma biblioteca, tudo demora muito tempo.
Temos também a certeza que  é hora de o começarmos a partilhar no Diário de Bordo! Vamos a isto!